Seg, 26 de setembro de 2011, 12:46

UFS 42 anos
UFS 42 anos

Josué Modesto dos Passos Subrinho


27/05/2010


Estamos reunidos em sessão solene dos Conselhos Superiores da Universidade Federal de Sergipe para celebrarmos o quadragésimo segundo aniversário de nossa instituição. A forma, como não poderia deixar de ser, é solene e vem sendo reafirmada, nos últimos anos, em nossa instituição, com respeito e reverências às mais antigas tradições, especialmente as da universidade-mater das universidades brasileiras, a Universidade de Coimbra. Entende-se, portanto, que o protocolo se imponha com uma força dogmática.



Permitam-me, entretanto, que comece meu discurso de forma inusitada, saudando a revogação de portarias, suspendendo das funções que estivessem ocupando, nas direções dos órgãos de representação estudantil, ou exercendo representação, no corpo discente da Universidade, a qualquer título, de estudantes matriculados em alguns dos nossos cursos, nos anos de 1968 e 1969.

A questão foi suscitada pelo Dr. João Augusto Gama, um dos ex-estudantes punidos, tendo em vista o momento de reparação das perseguições políticas promovidas durante o regime militar por que estamos passando. Encaminhamos esta propositura à comissão organizadora das celebrações do aniversário da UFS que por sua vez, submeteu proposta ao Colendo Conselho Universitário, obtendo, nesta instância máxima da Universidade, apoio unânime.

Alguns poderiam indagar acerca do significado prático da revogação das portarias de suspensão de direitos dos estudantes, após tantos anos passados, quando a maioria deles já obteve seus diplomas e alguns já não vivem. Outro aspecto preocupante é que a simples revogação das portarias poderia provocar um sentimento de censura ao posicionamento do então reitor, nosso primeiro reitor, Dr. João Cardoso do Nascimento Júnior.

Precisamos relembrar, muito sumariamente, o clima político vigente nos anos 1968-69. Os militares, detentores do poder crescentemente autoritário, tinham conseguido adesão de boa parte da estrutura partidária tradicional, reorganizada em dois partidos, um da situação e outro de oposição. Neste momento, muito moderada, sufocada, através da violência, a resistência, nos meios sindicais e nos incipientes movimentos da sociedade civil se instalava. Neste contexto, o movimento estudantil era uma trincheira de resistência, por vezes, sob o abrigo das instituições acadêmicas. Mecanismos repressivos foram desenhados especialmente para o movimento estudantil, como por exemplo o decreto 477, de 26.02.1969, que previa punições aos participantes de atividades políticas, no âmbito estudantil, e o 228 que reorganizou a forma de representação estudantil e colocou na ilegalidade a União Nacional dos Estudantes. Foi exatamente neste momento que o reitor João Cardoso do Nascimento Júnior recebeu a informação de que as atividades políticas oposicionistas, em Sergipe, consideradas subversivas, estavam centralizada nas faculdades recém incorporadas à Universidade Federal de Sergipe. No clima da época, isto significava, ninguém tinha dúvida, uma ordem da fonte real de poder para expulsão dos alunos.

Podemos imaginar a tensão vivida pelo reitor. Por um lado, a pressão dos poderosos, por outro, sua consciência democrática que se recusava a expulsar alunos pela simples razão de não comungarem com os valores políticos dos detentores do poder. Algo tinha que ser feito e foi feito. As portarias, suspendendo os direitos de representação estudantil dos então notórios subversivos, pareciam uma submissão aos militares e, provavelmente, assim foram entendidas pelos atingidos e pelos impositores, mas certamente devem ter descontentado a ambos os lados: a) aos militares pela tibieza do ato repressivo; b)aos estudantes pela concessão aos poderosos.

A virtude do ocupante de cargo público é proporcional à sua capacidade de resistir à incompreensão das motivações de seus atos, principalmente a que tem como fonte os beneficiários desses atos.

Nossa Universidade pode se orgulhar de não ter sido maculada pela intolerância política, por ter defendido, nos limites de sua autonomia, a liberdade de pensamento, fundamento básico do ambiente acadêmico, mas que foi violentado, em diversos momentos, no Brasil, muito especialmente sob o regime militarN nesta época, várias universidades expulsaram alunos, professores, delataram colegas para prestar serviço ao regime vigente ou aspirando posições ocupadas por rivais.

A marca da tolerância política é a marca indelével do reitor João Cardoso do Nascimento Júnior que teve continuidade, em pelo menos, outro reitor, sob o regime militar, José Aloísio de Campos. Tive a honra de conviver com ele alguns anos, após seu reitorado, e testemunhar seu depoimento acerca das pressões dos organismos de segurança e informação do regime para que a Universidade não contratasse professores suspeitos de atividades políticas consideradas subversivas. O reitor classificou como interferência injustificada na autonomia da universidade, em seu direito de selecionar, por critérios estritamente acadêmicos, o seu corpo docente, tendo assumido total responsabilidade sobre o futuro comportamento político destes docentes, que possivelmente nunca souberam do encargo adicional que pesava sobre o reitor.

É por esta razão que, ao revogarmos as portarias de suspensão dos direitos de representação estudantil exaradas pelo reitor João Cardoso do Nascimento Júnior, por resolução do Conselho Universitário, também declaramos, em memória do nosso primeiro reitor, o reconhecimento da atual geração, por ele ter reforçado, entre nós, a tolerância política a qual devemos honrar para engrandecimento de nossa instituição e de nossa sociedade.

Ao conjunto de professores eméritos e servidores técnico-administrativos distinguido pela Comissão Especial e referendado pelo Conselho Universitário, tenho que apresentar nossos agradecimentos por sua dedicação exemplar e inspiradora das gerações quanto às formas de melhor nos dedicar à nossa Universidade Federal de Sergipe. Vocês fizeram jus à homenagem hoje recebida.

A distinção máxima da Universidade, o título de Doutor Honoris Causa, foi concedida ao professor José Ibarê Costa Dantas. Nos quarenta e dois anos de nossa Universidade, dezessete pessoas tiveram o mesmo privilégio. Inicialmente, importantes dirigentes políticos como o então Governador de Sergipe, Lourival Baptista, o Ministro Jarbas Passarinho, o Ministro da Educação Raymundo Moniz de Aragão e, mais recentemente, o Ministro da Educação Murílio Hingel e o governador Marcelo Deda, no ano passado. A partir da década de 1990, os acadêmicos prevaleceram entre os homenageados como os geógrafos Milton Santos, Manoel Correia de Andrade e Maria do Carmo Galvão, os filósofos Marilena Chauí e Dom Luciano Cabral Duarte, o médico Marcelo Barbieri, os físicos José Leite Lopes e Sérgio Resende. A concessão do título de doutor honoris causa por nossa universidade tem sido parcimoniosa e criteriosa. Pode-se perceber, nos dois subconjuntos, o dos dirigentes políticos e o dos acadêmicos, o papel relevante que os homenageados tiveram para o desenvolvimento de nossa instituição, do ensino superior, de uma maneira geral, ou do conhecimento.

No caso específico dos acadêmicos, o titulo de doutor tem como meta distinguir seu detentor pela autonomia intelectual, pela capacidade de propor novas linhas de pesquisa, de compreender e superar as limitações das teorias vigentes, de discernir o que é relevante, na miríade de informações e hipóteses continuamente produzidas pelos pares.

Acredito que a autonomia intelectual é a pedra fundamental sobre a qual se construiu a carreira do professor Ibarê Dantas. Em seu prefácio à obra inaugural de Ibarê, “O Tenentismo em Sergipe”, o falecido professor Silvério Fontes relata alguns episódios que ilustram a autonomia intelectual de Ibarê, ao compartilhar com o professor algumas decisões e projetos. O professor, com certa ponta de orgulho pelo sucesso do discípulo, menciona o não cumprimento de orientações sugeridas, como por exemplo, não abandonar o prestigioso curso de direito pelo de história, não obstante Ibarê ter dito que sua vocação não estava nas ciências jurídicas. Licenciado em História, Ibarê teve uma experiência efêmera no ensino, preferindo abandoná-la, dispensando novamente os conselhos de seu mestre, para dedicar-se ao seu projeto de escrever um livro, cuidando de suas fichas de pesquisa e das fichas endereçadas ao escriturário do Banco do Brasil, estas últimas garantindo sua autonomia pessoal e familiar.

Escrever O Tenentismo lhe custou quatro anos de árdua e metódica pesquisa, após sua licenciatura em História. Qualquer dos nossos colegas ou alunos dos cursos de pós-graduação podem se sentir intimidados quando comparamos nossas toscas produções com esta obra prima e quando lembramos as condições em que foi produzida. Nada de bolsas e auxílios à pesquisa, nada de bolsistas de iniciação científica ou orientandos de pós-graduação a devassar e sintetizar documentos perdidos e esquecidos, nada dos maravilhosos recursos digitais de cópias, arquivamento e classificações de dados, apenas puro trabalho artesanal e talento, muito talento.

Há outro aspecto a se destacar, a ousadia na escolha do tema, visto que, no início dos anos 1970, os militares eram frequentemente odiados ou temidos, mas raramente objeto de estudos acadêmicos. A ironia de estudar militares que, cinqüenta anos antes, tentaram, através da força, mudar as estruturas político-sociais do Brasil, quando vivíamos o auge de um regime militar que, através da força, impedira a implantação, por um governo constitucional, de um programa de reformas que suspostamente poderia alterar a estrutura tradicional de dominação, beirava a insolência. Por isto e pela maestria de combinar uma precisa exposição das estruturas sócio-econômicas de dominação com uma cinematográfica reconstituição dos fatos da revolta dos tenentes em Sergipe, esta obra, publicada pela Editora Vozes, de Petrópolis, conhecida pelo acolhimento de autores críticos em relação ao regime vigente, foi saudada nacionalmente, tendo sido listada entre as mais vendidas em jornais de circulação nacional.

Poucos anos depois da publicação do Tenentismo em Sergipe, Ibarê é aprovado em concurso público para docente da Universidade Federal de Sergipe, no cargo de auxiliar de ensino. Em 1978, acompanhado de sua esposa, Beatriz Góis Dantas, também professora da UFS, se dirigem para a Universidade Estadual de Campinas, um dos principais centros de excelência acadêmica do Brasil, para cursarem, ele o mestrado em Ciência Política, ela o mestrado em Antropologia.

Na UNICAMP, Ibarê novamente pode expor sua autonomia intelectual. Pela obra já reconhecida, pelo domínio da literatura mais atualizada, na área da Ciência Política, pela seriedade com que encara os estudos, foi reconhecido pelos colegas e mestres, mesmo que isto incomodasse a alguns, como pesquisador de qualificação superior.

Vivia-se, então, uma certa tensão entre os pensadores estruturalistas que tentavam, com uso de categorias de alta abstração, desvendar a essência do estado capitalista e decifrar os sinais de sua crise para qual, segundo alguns, havia sinais de seu iminente colapso, faltando talvez o acender do “fiat lux” para desencadear a insurreição, a revolução. De outro lado, pensadores influenciados por Gramsci ressaltavam a autonomia relativa da política e da cultura, na construção da hegemonia de classe, que tornava vã a expectativa de generalizar o exemplo russo de assalto ao poder, através de golpes de estado, em sociedades que desenvolveram estruturas mais complexas e mais solidamente enraizadas na própria sociedade civil.

Sem se apoiar em Gramsci, a construção por Ibarê, o Tenentismo combina uma acurada percepção da estrutura de dominação que indicava as pequenas possibilidades de êxito da revolta tenentista com uma preciosa tecitura dos movimentos dos tenentes, no mundo da política, onde precisamente seriam digeridos, incorporados e dominados, em seu afã revolucionário. Longe dos anátemas que a leitura dos militantes dirigiriam aos personagens históricos, o cientista político compreende como um desenrolar de uma tragédia, previsível, inevitável, inexorável. Quem sabe? A história sempre permitirá uma nova construção, na medida em que é feita pelos homens e os homens costumam desafiar até os deuses, quanto mais as estruturas. Mais interessantes são as perguntas e as perplexidades do que as respostas, por vezes, tão enganadoras, em sua aparente certeza.

Finalmente, gostaria de destacar outro indicador da elevada qualidade da produção intelectual de Ibarê Dantas.

Quantas monografias, teses e alentadas obras foram escritas, nos últimos anos, as quais certamente trazem a marca das datas, porque se renderam facilmente aos modismos acadêmicos vigentes e não mais se sustentam retirados os andaimes dos jargões vistosos que povoaram nossos círculos acadêmicos, em algum dia.

A obra de Ibarê Dantas tem a distinção de ter superado a barreira temporal. Ainda é lida, provocando, instigando leitores e pesquisadores a pensar a nossa sociedade, por ela perpassa a esperança do autor de construção de instituições democráticas, que potencializem a autonomia de todos os cidadãos.

Não cabe a mim, nem este é o momento para uma análise exaustiva da obra do nosso doutor honoris causa, espero apenas ter apresentado alguns elementos para esta ilustre platéia acerca das motivações de nossa universidade, em conceder ao seu ilustre ex-aluno e ex-professor o merecido título que acabou de receber.

Quanto ao mais, caros homenageados, devo reafirmar como tenho feito, há alguns anos, que ao, homenageá-los, a Universidade espera incorporar permanentemente como virtudes institucionais suas virtudes individuais.

Precisamos nos espelhar em suas capacidades de dedicação ao trabalho, em suas independências intelectuais e, finalmente, perseguir a excelência de suas produções que dignificam a vida acadêmica.

Discurso proferido durante sessão solene dos Conselhos Superiores.


Currículo
Reitor da UFS.""


Atualizado em: Seg, 26 de setembro de 2011, 12:47
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