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O que podemos aprender com o Coronavírus?

Esta pergunta, tão comum em tempos de dúvidas e temores como os que estamos vivendo diante da pandemia provocada pelo Coronavírus, não se enquadra, precisamente, dentro do que poderíamos chamar de nota de utilidade pública. Com isso quero ressaltar o caráter iminentemente pessoal e reflexivo que norteia o argumento aqui exposto. Neste sentido, se há algo de útil, neste artigo, há que ser descoberto na medida em que cada leitor ou leitora se identifica com a opinião aqui expressa.

Como alguém atento aos noticiários e redes sociais, sinto-me invadido, tomado, absorvido por informações que, em grande parte, estabelecem o campo de “guerra” e define os inimigos: de um lado o vírus e de outro as pessoas. O vírus, como o protagonista e as pessoas como seus propagadores. Mas, o que há de estranho nessa equação tão bem definida entre vírus e pessoas? Em minha opinião, embora compreensiva do ponto de vista geral, se atentarmos para os procedimentos sugeridos pelas autoridades sanitárias de todos os países, esta equação merece ser repensada.

O que sustenta as recomendações para prevenção e combate ao vírus? De modo geral, isolamento e higiene pessoal (além de espaços e objetos). Quando leio, e não são poucos, os folhetos ilustrados com cuidados básicos, a conclusão a que sempre chego é: lave as mãos e não toque na boca, olhos e nariz. Percebam que as “outras” pessoas só aparecem como “causas” enquanto compartilham, junto comigo, de um mesmo mundo. Estamos todos, inclusive os vírus, dividindo isso que chamamos de vida na Terra. Com isso quero chamar atenção para o que acredito ser o centro de uma luta que se pauta no coletivo, mas que é radicalmente individual, ou melhor dito, pessoal. Utilizo o termo “pessoa” em sentido de corporeidade. A luta contra a Corvid- 19 é uma luta minha “com” e “contra” o meu corpo.

Com meu corpo, porque sou eu, em minha completude físico-mental, o centro de afecção e reação diante do vírus. Contra meu corpo, porque sou eu lutando contra meus próprios hábitos corporais. “Lave as mãos”, “não toque na boca”, “não toque no nariz”, apontam para um estado de vigilância que requer atenção contínua comigo mesmo e com meu entorno. Essa prática, que em certas filosofias e religiões, pode ser descrita como “atenção” ou “consciência” de si, exige uma reeducação radical que, em tempo de pandemia, torna-se o desafio maior. Dito de modo mais direto, eu sou o meu inimigo e o meu guardião. O vírus somente nos provoca, com sua presença invisível, a nos vermos a nós mesmos. A nos questionarmos sobre como, onde e de que modo nos relacionamos com os outros (pessoas e objetos).

É por essa razão que o uso de máscaras, quando não em casos necessários (contágios), pode ser visto como um artifício, um meio rápido de suprir o incontrolável controle exigido de nós. Todavia, somos seres forjados por hábitos rápidos, desatentos, insanos, porque não dizer imundos, que nos colocam em uma condição de alienação em relação ao nosso corpo e ao próprio mundo. A Corvid-19 é um alerta, não apenas por si mesma, mas naquilo que ela nos mostra, a saber: nossa perdição.

Esta questão não é nova. Filósofos e tradições religiosas, gregas, orientais, africanas, já discutem, há séculos, o risco de uma vida alienada e submetida ao ritmo desenfreado de um mundo que converte pessoas/corpos em massa inconsciente. Submetidas a condições inumanas, estas vidas sobrevivem desapropriadas de si.

Neste sentido, essa pandemia nos suspende, por sua rapidez de contágio, lançando-nos na trilha do temor e do pânico. Medidas governamentais são tomadas como fechamento de fronteiras, quarentenas, cancelamento de aulas, adiantamento de férias, etc., mas ao fim e ao cabo, aqui estamos, chamados a olharmos para nós mesmos. Vírus surgem, matam, somem e voltam. E nós? O que podemos aprender com tudo isso? Penso que, além da necessidade de defesa, com medidas de contenção apropriadas, de uma ameaça externa que nos atinge de forma avassaladora, é necessário percebermos, em primeiro lugar, a ameaça que somos para nós mesmos e o quão importante é reaprender a lidar com nossos corpos.

Mãos, bocas, narizes, olhos, órgãos que isolados assumem funções específicas, mas que compõem, em seu conjunto, o que somos e o que podemos. Diante do temor, ampliado em dimensões sociais, qualquer saída possível passa por centramo-nos em nossos corpos e hábitos. Com isso, quero pensar na substituição da tensão entre corpos (eu e os outros) por uma distensão, em seu sentido de alongamento que implica em um cuidado consigo e que exige, por consequência, uma nova relação de atenção para com o tempo, os espaços, o ritmo e os outros corpos.

Longe de um individualismo, o que acredito estar na base desse modo de pensar é, justamente, o contrário, ou seja, a abertura para a uma ação solidária de quem assume o compromisso consigo e, consequentemente, o respeito para com a coletividade. Isto nos levaria a realizar ações mais comedidas do ponto de vista das necessidades básicas, mais responsáveis no que se refere às nossas ações diante dos demais e mais serenas diante do temor. É certo que estamos em uma fase de quase completa ignorância em relação ao nosso “inimigo”, mas talvez ao demarcarmos nossas fronteiras, fortalecendo nosso território, possamos enfrentá-lo com toda nossa inteireza e conscientes do que precisamos e devemos fazer.

Finalmente, a resposta do médico Rieux ao jornalista Rambert, em A peste, ilustra bem o que tentei esboçar nesse breve texto. Após ouvir Rambert afirmar a incapacidade humana de amar e a necessidade de resignação contra o que seria heroísmo de quem pensa o contrário, doutor Rieux responde: “não se trata de heroísmo. Trata-se de honestidade. É uma ideia que talvez faça rir, mas a única maneira de lutar contra a peste é a honestidade” (Camus, 2017, p.153). Diante desta afirmação, Rambert indaga: sobre o que é a honestidade e recebe a seguinte resposta: “- Não sei o que ela é em geral. Mas, no meu caso, sei que consiste em fazer o meu trabalho” (Camus, 2017, p. 154). Façamos pois, cada um a sua parte; não esperemos saídas imediatas, fortaleçamos nossos corpos, não façamos do desespero um hábito e não permitamos que “a peste tire a todos o poder do amor e até mesmo da amizade” (Camus, 2017, p.170).

*Camus, A peste, trad. Valerie Rumjanek, Rio de Janeiro: Record, 2017.

Cicero Cunha Bezerra é professor do Departamento de Filosofia e dos Programas de Pós-Graduação em Filosofia e Ciências da Religião da UFS. Pesquisador do CNPQ.


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