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A presença pública das religiões em tempos de pandemia

Nas últimas semanas do mês de maio de 2020 circulou pelas redes sociais um vídeo no qual um fiel que se apresenta como obreiro de uma igreja evangélica em Sergipe denunciava ação policial “abusiva” que impediu a realização de um “culto online”. O protagonista fez leitura da Constituição Federal em seu Art. 5º do Capítulo I (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos), Inciso V, referente à “inviolabilidade da consciência de crença, sendo assegurado o exercício dos cultos religiosos e garantida na forma de lei da proteção aos locais de culto e suas liturgias”. Ressalta que aquele local de culto é protegido por lei, que não havia aglomeração de pessoas, protesta contra a ação policial, destaca o não-reconhecimento pelas autoridades públicas do papel assistencial das igrejas, reivindica seu direito de “ir e vir” e reitera que a Constituição Federal está acima de decretos governamentais.

As tensões contidas na narrativa do obreiro estão vinculadas às tensões que se verificam na esfera pública (HABERMAS, Jürge. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.) no Brasil a partir das medidas adotadas por governadores e prefeitos contra a disseminação do Coronavírus. No caso de Sergipe, o Governo do Estado, desde o dia 16 de março de 2020, quando foram confirmados os primeiros casos de pessoas infectadas pelo vírus da Covid-19, adotou diversas medidas restritivas. Naquela data o governador Belivaldo Chagas suspendia, através de decreto, todos os eventos públicos dos quais participem mais de 50 pessoas em ambientes fechados e 100 em ambientes abertos. Especificamente, o documento recomendava que as entidades religiosas adotassem o mesmo mecanismo de restrição previsto no decreto.

Os questionamentos contidos no vídeo sintetizado estão próximos dos posicionamentos públicos de algumas lideranças religiosas no Brasil quanto à interrupção dos serviços e o fechamento dos templos como forma de colaboração com as medidas de isolamento. Em diversas ocasiões, similares aos argumentos do obreiro, elites pastorais e parlamentares, sobretudo evangélicas, que vêm se projetando na mídia e desenvolvendo um ativismo político-religioso na esfera pública, tais como R.R. Soares (Igreja Internacional da Graça de Deus), Silas Malafaia (Assembléia de Deus Vitória em Cristo), Edir Macedo (Igreja Universal do Reino de Deus) e Valdemiro Santiago (Igreja Mundial do Poder de Deus) têm defendido publicamente o fim do isolamento social.

Em algumas pregações tais lideranças minimizam a pandemia e criam um cenário de otimismo em relação ao Governo Federal, sobretudo a partir da ideia de que o Brasil estaria se tornando mais cristão e de que o presidente Jair Bolsonaro seria um escolhido de Deus para presidir a nação. Além do princípio da liberdade religiosa como fundamento para a manutenção das portas abertas e da realização de cultos, ressalta-se a extensão aos anúncios de curas ou promessas de imunização contra o vírus, o que implica na perspectiva de que as igrejas seriam “serviço essencial” em sua dupla tarefa espiritual e assistencial (BANDEIRA, Olívia; CARRANZA, Brenda. Só o Brasil cristão salva da Covid-19. Boletim n.33 - Ciências Sociais e coronavírus. 05 de maio de 2020).

De certa forma, tais posicionamentos religiosos aderem àqueles tornados públicos pelo presidente Jair Bolsonaro, que em diversas ocasiões tem questionado as medidas de isolamento adotadas pelos governadores e prefeitos. Tais posturas de alinhamento entre tais lideranças e o presidente da República refletiram na publicação do Decreto Presidencial Nº 10.292, DE 25 DE MARÇO DE 2020, que altera o Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020, que regulamenta a Lei nº 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, para definir os serviços públicos e as atividades essenciais. Nesse documento, o inciso XXXIX incluía as atividades religiosas de qualquer natureza, obedecidas as determinações do Ministério da Saúde (BRASIL. Presidência da República. Decreto Nº 10.292, de 25 de março de 2020. DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO. publicado em: 26/03/2020 | Edição: 59 | Seção: 1 Página: 1. Órgão: Atos do Poder Executivo). Entretanto, a Justiça Federal no Rio de Janeiro suspendeu no dia seguinte os efeitos do decreto que definia como serviço público essencial as atividades religiosas.

Do mesmo modo, em Sergipe a Prefeitura Municipal de Nossa Senhora do Socorro publicou decreto em 22 de abril de 2020, no qual estabelecia medidas para a retomada gradual das atividades religiosas em virtude da pandemia da Covid-19 naquele município, com uma série de recomendações quanto a: horários de funcionamento, número de pessoas aglomeradas, medidas contínuas de higienização do espaço, respeito ao distanciamento espacial por pessoa, utilização de máscaras pelos participantes, dentre outras (PREFEITURA MUNICIPAL DE NOSSA SENHORA DO SOCORRO. DECRETO Nº 20.095 de 22 DE ABRIL DE 2020). No dia 23 de abril, o Governo do Estado alterou o caput do art. 2º do Decreto nº 40.576, de 16 de abril de 2020, com soluções de transição às medidas previstas no Decreto nº 40.567, de 24 de março de 2020. Isso implicou na revogação do Decreto N° 20.095 pela gestão daquele município.

Nos decretos aqui citados que classificam as religiões enquanto “serviços essenciais” se observam crescente relevância e envolvimento de grupos e organizações religiosos nos assuntos públicos (BURITY, Joanildo. A cena da religião pública: contingência, dispersão e dinâmica relacional. Novos Estudos CEBRAP, n.102, p. 89-105, jul. 2015). Obviamente existem significativas diferenças entre a abrangência e a importância de um decreto presidencial e um municipal. Porém, ambos apontam à necessidade de compreensão da relação entre religião e política/gestão do Estado no Brasil, sobretudo quando a religião contamina diretamente as regras do funcionamento da esfera pública e política com sua cosmologia, moral e valores, mas também quando critérios laicos e humanistas influenciam religiões nas suas concepções da realidade. (CAMURÇA, Marcelo. Religião, política e espaço público no Brasil: perspectiva histórico/sociológica e a conjuntura das eleições presidenciais de 2018. Estudos de Sociologia, Recife, 2019, Vol. 2 n. 2).

O conteúdo do citado vídeo e o teor das medidas adotadas pelas autoridades civis levariam a uma ampla discussão jurídica. Acreditamos que os pesquisadores dessa seara poderão analisar nessa perspectiva. No nosso caso, propomos uma leitura no âmbito das Ciências da Religião. Mas, especificamente, o episódio narrado pelo obreiro, sem entrar no mérito da veracidade ou falsidade dos fatos citados, nos levam à compreensão de como as religiões nesse momento de pandemia da Covid-19 participam das formas contemporâneas de alterar seus vínculos, produzindo mais individuação e coletivização ao mesmo tempo. Quando o citado fiel classifica as práticas ofertadas naquele templo como um “serviço essencial”, reforça-se o argumento de que a religião é algo que está nos fundamentos da sociedade, sobretudo a partir dos entendimentos acerca do que seja liberdade religiosa e suas implicações na esfera pública (GIUMBELLI, Emerson. Religiões em tempo de pandemia. Boletim n.33 - Ciências Sociais e coronavírus. 05 de maio de 2020).

Em boa parte da América Latina os regimes políticos têm se sustentado aberta e veladamente, a partir da autoridade religiosa ou, geralmente, do poder sagrado. As questões e desafios para o enfrentamento da pandemia de Covid-19 estão longe de serem solucionados e vão além das medidas adotados no âmbito das políticas de saúde pública. Possivelmente muitas situações concretas de interação e fricção envolvendo religiões e instâncias públicas e laicas ainda ocorrerão em diversos cenários epidêmicos. Além dos pesquisadores da seara das ciências biológicas e da vida, os Cientistas da Religião também terão questões a serem respondidas. Isso nos leva a questionamentos quanto à neutralidade do Estado em relação à religião.

Péricles Andrade é doutor em Sociologia (UFPE) e Professor Associado III da UFS.

Ronaldo Sales é licenciado em Ciência da Religião e Mestrando em Ciências da Religião (UFS).


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