Em uma cadeira de escritório na sala pequena do apartamento localizado na sobreloja de um açougue, havia uma camiseta amarela cuja estampa era uma junção da palavra “FORA” com o desenho de uma mão aberta, faltando o dedo mínimo e preenchida pela bandeira do Brasil. Sobre a escrivaninha ao lado, o último de uma pilha de livros era a obra da teórica política Hannah Arendt intitulada “As origens do totalitarismo”.
São seis estudantes vivendo na casa, oriundos de outros municípios, e que não se conheciam antes de morarem juntos. Veio a pandemia do novo coronavírus, quatro deles foram para suas cidades, apenas Daniel de Jesus Faria e Lucas Alcântara ficaram.
As diferenças de personalidades, comportamentos e posições políticas dos estudantes que convivem em residências estudantis ganharam um novo aspecto com a necessidade de isolamento social imposta pela pandemia. Conversamos com Lucas e Daniel para conhecer suas histórias e saber como está sendo essa convivência (confira um especial em vídeo ao final desta reportagem).
Daniel de Jesus Faria, 26 anos, percorria dois quilômetros a pé, todos os dias, depois das 23h, da BR-101 até sua casa, na zona rural de Estância, Sergipe. Ele saía da aula por volta das 22h40, no curso de Filosofia do Campus de São Cristóvão, e pegava um ônibus de estudantes de Arauá para descer na rodovia de onde partia sua caminhada diária.
“Logo no início é uma parte muito esquisita, porque tem a mata ciliar, depois vem plantação de laranjeira, do outro, canavial; e eu descia ali 23h20, né, então assim, ia rezando ‘Deus por mim, nada contra mim, Deus por mim, nada contra mim’, e assim ia…”, relata o estudante.
A via crucis de Daniel de Jesus só acabou quando ele conseguiu o Auxílio do Programa Residência Universitária (PRU), iniciativa voltada a discentes que precisam sair de suas cidades para estudar. O programa consiste no aporte financeiro da Universidade Federal de Sergipe para despesas com moradia a um grupo de até oito estudantes. Atualmente esse valor é de R$ 900, mas o programa concede também isenção no Restaurante Universitário (Resun) ou Auxílio Alimentação, além de isenções de taxas acadêmicas e apoio nos aspectos sócio-político-educativo-psicológico no ambiente universitário.
“A residência traz paz pra gente, sabe? Porque como a gente não tem família rica… a Residência faz com que a gente não se preocupe com conta de energia, conta de água… isso é algo bom, né”, argumenta.
Depois, Daniel foi aprovado em Direito, cursando atualmente o oitavo período. A casa em que mora fica no bairro Rosa Elze, bem próximo ao campus de São Cristóvão, onde estuda. Ele vive atualmente com outros cinco estudantes.
Lucas Alcântara, 24 anos, é de Capela, Sergipe, onde vive seu pai, que é cortador de cana, e sua mãe, dona de casa. Ele estuda Física e também sentiu sua vida acadêmica mudar após conseguir o auxílio.
“A Residência foi uma grande mudança na minha vida, foi ela que possibilitou levar o meu curso, a minha graduação, até o final (hoje eu estou no décimo período, já estou quase me formando). Mas a partir da Residência, tudo ficou bem mais simples, porque eu tenho mais tempo para estudar, as minhas notas na universidade aumentaram bastante”, pontua Lucas.
Os alunos são selecionados através de sua condição sócio-econômica e permanecem na residência até concluir o curso. Devem manter bom aproveitamento acadêmico, o que é acompanhado por comissões da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis e Comunitários (Proest). Em dezembro havia 102 residências assistidas pela UFS, nas cidades onde há campus. Atualmente, cerca de 460 estudantes são beneficiados, distribuídos nas casas de acordo com o gênero.
+ Para acompanhar os editais de auxílios e bolsas da UFS, acesse o site da Proest
Aí veio a pandemia
Com a definição das aulas remotas por conta da pandemia, estudantes que estavam residindo em outras cidades para estudar na UFS acabaram voltando para suas casas, prosseguindo o curso ao lado da família. Outros, como Lucas e Daniel, preferiram ficar na residência universitária.
Lucas precisou ficar porque no início das aulas remotas, ainda estava lecionando presencialmente através de aulas particulares, se deslocando para isso. Achou melhor também preservar a família, adiando o reencontro que não acontece desde então. Já Daniel não sentiu muito a ausência da casa da avó, com quem morava - ele perdeu a mãe ainda criança, e o pai não foi presente em sua vida. O contato se manteve à distância com a avó, mas também preferiu preservá-la, sobretudo por conta de seus 81 anos. Quanto aos demais familiares, o relacionamento já não era muito bom, segundo o próprio discente.
O impacto da pandemia, no entanto, vai além da saudade de casa. Lucas relata que os efeitos da crise sanitária afetaram seu rendimento na universidade.
“No meu caso, eu senti baixar meu desempenho na universidade, foi uma coisa que eu senti bastante. Quando era presencial, eu ia à UFS, eu ouvia o professor, fazia novas amizades, havia um grupo de estudantes, a gente discutia, tinha atividade para fazer… E quando veio esse isolamento social, não tinha mais isso, não tinha mais aquela conexão humana com os estudantes”, argumenta o capelense.
O desafio para os alunos, professores e para os técnicos da política assistencial da universidade é o fato de que o ensino remoto imposto da forma como ocorreu, sem planejamento, por causa e sob o contexto de uma pandemia, interferiu no rendimento acadêmico. Por outro lado, esse rendimento é requisito indispensável para a manutenção dos auxílios e bolsas.
Nelly Monteiro é Técnica em Assuntos Educacionais (TAE), um dos cargos que formam as comissões que acompanham a concessão e manutenção (ou não) dos auxílios administrados pela Proest. Ela confirma que no período pandêmico houve uma queda de rendimento dos estudantes beneficiados pelos programas assistenciais. Ela salienta que, se a situação é desafiadora para os discentes que vivem nas residências custeadas pela UFS, é muito mais árdua para aqueles que não têm esse recurso - ou que até disponham de outros auxílios, mas de menor valor.
A servidora destaca que a realidade em que o aluno está inserido deve ser considerada quando se faz o acompanhamento do seu aproveitamento nas disciplinas. “O acadêmico não é somente ler o que o sistema dá. É você entender o que é que aconteceu com aquele aluno para que aquele rendimento caísse. É o emocional, que na pandemia ficou piorado, ficou evidente; é o financeiro, que a gente viu um Brasil que já estava ficando empobrecido, fica mais empobrecido ainda com a pandemia, as pessoas começaram a passar necessidades. A gente regrediu muito na questão socioeconômica. É a questão de o aluno não se adaptar ao ensino remoto”, descreve Nelly.
O esforço dos profissionais da Proest é fazer cumprir o principal objetivo que justifica a existência dos programas de assistência: manter o aluno na universidade. Tarefa difícil quando se trata de um cenário às vezes desalentador, como nos conta Nelly, emocionada:
“Eu fui aluna de escola particular a vida toda. Eu digo a você que eu só conheci a realidade mesmo, do que é um aluno com dificuldade, quando eu comecei a trabalhar na Proest… sabe... porque, assim, você vê um aluno ‘viver de R$ 200’ por mês, para tudo…”.
Edjanaria Borges, assistente social, integra as equipes de acompanhamento dos programas e confirma a percepção da colega.
“O nível de empobrecimento dos alunos, das famílias, está muito grande. A questão social agora está muito, muito evidente, e a gente fica muito entristecida. A gente vê nos relatos que eles colocam, que o pai está desempregado, que alguém [na família] perdeu o emprego, ou então que, mesmo trabalhando como autônomo, não estão conseguindo renda, muitos eram beneficiários do auxílio emergencial”, relata a profissional.
Além das comissões no campus-sede em São Cristóvão, os demais campi têm uma comissão, cada um, todas respondendo à Proest a respeito dos programas.
A UFS mantém cerca de 4.500 auxílios e bolsas, considerando os programas administrados pela Proest (veja infográfico). Até o segundo semestre letivo de 2020, que está em andamento, são 23.850 alunos matriculados em cursos de graduação presenciais. O número de beneficiados é insuficiente para esse alunado, mas é resultado de um grande esforço diante da dificuldade orçamentária imposta às universidades públicas.
Saúde mental em risco
Não foram só os moradores das residências estudantis e alunos vulneráveis economicamente os impactados pelas restrições forçadas pela pandemia. Cinthia Almeida Lima, 37 anos, formada em Direito, já advogando, mas também estudante da graduação e do doutorado em Filosofia, sentiu os reflexos dos tempos pandêmicos.
“Durante esse período da pandemia, várias questões vieram relacionadas ao emocional, se eu realmente gostaria ainda de continuar a graduação, se realmente seria compatível, para mim, continuar no doutorado junto com o meu trabalho atual. E por conta disso eu solicitei o auxílio do SPAE [Serviço de Psicologia da Assistência Estudantil], da Universidade Federal, para poder entender mais esse momento que nós estamos vivendo, da pandemia, entender algumas questões relacionadas a bloqueio de escrita, que eu tenho sentido bastante. Entender algumas questões, mesmo, internas, por conta de toda essa transformação que a gente tem vivido”, conta a discente, que mora sozinha em um apartamento em Aracaju (confira um especial em vídeo ao final desta reportagem).
João Paulo Machado Feitoza é psicólogo da UFS e relata que o aumento da procura por assistência psicológica cresceu bastante durante a pandemia. Para os estudantes beneficiados pelos programas assistenciais, já existe um acompanhamento psicossocial, aliado ao acompanhamento pedagógico, realizados pelas comissões. Mas, além desse trabalho, os psicólogos lidam também com as demandas relacionadas à saúde mental.
Desde 2019, os atendimentos do serviço de psicologia eram feitos na clínica do setor, que fica na Vivência do campus de São Cristóvão. Com a pandemia e a necessidade do trabalho remoto, os psicólogos e demais profissionais do SPAE passaram a atender de forma online.
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A equipe de seis psicólogos é responsável pelo acompanhamento e intervenção nas demandas de saúde mental dos alunos da universidade, de graduação e de pós-graduação, de todos os campi. A partir de março de 2020, as demandas são recebidas através de um número de WhastApp, depois agendadas para um atendimento inicial em um plantão virtual.
“Elaboramos uma estratégia, um tipo de intervenção, que nós chamamos de ‘aconselhamento psicológico’ - as pessoas vão entender, pela divulgação que a gente faz nas redes sociais, como ‘plantão psicológico’. É um tipo de atendimento breve, que é focado em um conjunto de problemas atuais e que por alguma razão influenciam e fazem com que essas pessoas manifestem dificuldades ou sofrimentos que implicam no dia-a-dia delas”, explica João Paulo.
A partir dessa abordagem inicial, o psicólogo analisa a possibilidade de encaminhar o discente para outros tipos de intervenções. Uma delas é a estratégia de atendimento grupal, que visa ao acolhimento de demandas dos usuários de maneira coletiva.
“Esses grupos são formatados a partir de características que tornam o processo grupal mais homogêneo e, ao mesmo tempo, permitem um efeito que a gente chama de coesão. Então, a gente identifica na população pessoas que apresentam demandas semelhantes e promove uma integração entre essas pessoas num processo grupal para que haja uma coesão intergrupal e a gente possa trabalhar esse tema de maneira compartilhada”, define o psicólogo.
Outra das estratégias usadas é a psicoterapia, “um tipo de atendimento estruturado, de um prazo maior”, descreve João Paulo. O objetivo, prossegue o servidor, “é identificar as características do sujeito - emocionais, de comportamento, de pensamento, de personalidade - para que, a partir dessa identificação, a gente possa, num plano de trabalho, atuar frente às dificuldades ou demandas que essa pessoa apresenta no cotidiano”.
Foi esse tipo de atendimento que amparou Cinthia - ela já havia feito terapia outras vezes, principalmente desde o final do mestrado, concluído no início de 2019.
“Até que em algum momento eu senti que precisava de uma terapia mais direcionada para os meus problemas, que estão mais atrelados à vida acadêmica. Então eu busquei justamente esse auxílio psicológico da UFS e tenho tido uma resposta muito boa”, define.
“Tenho conseguido cumprir os prazos em relação aos trabalhos da faculdade, da graduação, tenho conseguido ler os textos relacionados ao doutorado com mais atenção. Senti que fiquei muito desatenciosa pelas notícias, principalmente relacionadas às mortes de pessoas - já passamos de 400 mil pessoas mortas no Brasil, isso me impactou enquanto cidadã, enquanto ser humano”, desabafa Cinthia.
Segundo João Paulo, as demandas relacionadas à saúde mental, decorrentes da pandemia, realmente foram uma constante e fizeram a procura “explodir”. O servidor diz que foram 1.570 atendimentos individuais, realizados virtualmente, entre os dias 23 de março e 31 de dezembro de 2020, distribuídos entre os seis psicólogos do SPAE. Não entram na conta os atendimentos presenciais dos primeiros meses do ano.
“Em termos de demandas, o que a gente percebeu que houve uma certa diferenciação. Houve uma mudança no modelo de ensino da universidade por causa da pandemia e aí a gente nota que ficaram cada vez mais frequentes as dificuldades dos alunos não só para administrar e lidar com as questões da pandemia, preocupações a respeito de adoecer, de perder pessoas da família, assim como no que diz respeito à adaptação das questões da universidade, no sentido da mudança do modelo de ensino - [que] passou a ser não presencial -, o volume de atividades,” conta João Paulo.
O atendimento direcionado às características dos alunos é o que contribui para a eficiência do serviço. É provável, também, que o pós-pandemia continuará exigindo a atuação mais intensificada dos profissionais da área assistencial da UFS, afinal o que está em perspectiva é o futuro dos jovens que hoje enfrentam a maior crise sanitária em mais de um século.
“Com o tempo, alguns colegas da residência precisaram de ajuda psicológica, e foi a partir daí que tiveram necessidade de pedir algum auxílio da Proest, para poder ter uma conversa, devido a todo esse problema, devido a todo esse isolamento, desempenho acadêmico... e pensando muito na vida depois da pandemia. Porque não foi só o agora, acabou deixando as pessoas mais ansiosas: e o depois? O que é que vem, o que é que tem para mim?”, questiona Lucas Alcântara.
Marcilio Costa
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